quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Artigo: Para ser um bom advogado basta conhecer a lei?

A professora de Direito da USP e PUC/SP e procuradora do munícipio de São Paulo, Lídia Reis de Almeida Prado, discute a questão da legalidade e formalismo jurídico e o exercício da profissão de advogado no Brasil.

Para ser um bom advogado basta conhecer a lei?


A história do universo jurídico está impregnada de legalismo, fato que se evidencia pelo próprio conceito de Direito, entendido apenas como um sistema de leis e, como tal, deveria ser estudado de modo acrítico e neutro1. Quem alguma vez não escutou quando da resolução de um problema jurídico: “esta questão não se refere ao âmbito do Direito, mas à Política, à Sociologia, à Economia, razão pela qual não deve ser considerada?” (1)

Levado às últimas conseqüências, o formalismo conduziu o Direito ao positivismo legalista e ao neopositivismo, o que acarretou a separação exagerada entre o mundo das normas e o mundo dos fatos (realidade) (2).

Esse formalismo acentuou-se na América Latina, pela influência, ainda forte (ao contrário do que ocorre, atualmente, na Europa), exercida por Hans Kelsen. Desse autor, que desenvolveu seus trabalhos em Viena, foi muito divulgada no Brasil a concepção normativista do Direito, defendida, até hoje, por juristas que têm sido mais extremados do que o próprio Kelsen, que, A concepção normativista do Direito, procurou “purificar” o Direito das ingerências da Filosofia e da Sociologia, muito atuantes na primeira metade do século XX. Para os que se filiam a esse modelo o mundo jurídico limita-se ao conjunto de regras instituídas pelo Estado, independentemente do seu conteúdo, o que “reduz o Direito a uma superficialidade mesquinha”, com eliminação da ética e do anseio de justiça. A teoria em apreço é adequada tanto para o aplicador do direito que quer ter a consciência anestesiada para evitar o sofrimento de assumir a responsabilidade por suas decisões, como por aquele que pretende se proteger sob uma capa de uma cômoda neutralidade . Em suma, o normativismo se aproxima daquilo que Marcel Camus denominou de “uma forma legal de fazer injustiça”, pois é um modo, talvez inconsciente, pelo qual os homens servem as leis, esquecendo-se do fato de serem elas instrumentos da humanidade (3). Entretanto, o próprio no capítulo VIII do seu célebre livro Teoria Pura do Direito” enfatisa a importância da interpretação da lei, dando importância ao papel do juiz no trabalho hermenêutico.

No presente, assistimos a uma alteração do predomínio do formalismo jurídico. Reagindo contra a pretensão normativista de reduzir a interpretação jurídica a uma simples aplicação dedutiva da norma ao fato, Theodor Viehweg, Michel Villey, Luís Recaséns Siches, Chaim Perelman e o chamado “Grupo de Bruxelas“, além de outros, preconizam um alargamento do campo jurídico para abranger outros processos de conhecimento que correspondem à vida real do Direito (4). E esta é, segundo tais autores, muito mais complexa do que a descrição contida numa simples fórmula legislativa.

Chaim Perelman observa que, enquanto o século XIX se caracteriza pelo predomínio do formalismo jurídico e de uma concepção legalista do Direito, o século XX é a época do realismo e do pluralismo jurídicos, onde os princípios gerais do Direito (e não só os princípios gerais do Direito legislado) têm uma importância cada vez maior. Para ele, durante o século XX, floresce uma concepção do raciocínio jurídico contrária ao formalismo, conduzindo ao reconhecimento do papel do intérprete na elaboração do Direito (5).

Atualmente, vários teóricos, além dos citados, entendem a interpretação do Direito como uma atividade criadora, pois caiu em descrédito a concepção dominante no século XIX, que considerava a sentença ou da decisão administrativa como um silogismo (em que a lei é a premissa maior; o fato, a premissa menor; e o “decisum”, a conclusão). Defende-se a idéia de que a jurisprudência –– seja dos tribunais, seja da Administração –– traz sempre, em maior ou menor medida, um aspecto novo, que não estava contido na norma geral. E isso ocorre mesmo quando a decisão tem fundamento em lei expressa, vigente e cujo sentido se apresenta aparentemente com clareza.

Explica-se: o direito contido nas normas, em geral, não está concluído, pois não constitui obra exclusiva do legislador, mas se completa necessariamente pela atuação dos julgadores dos casos concretos. É que o processo de produção do direito vai, sem solução de continuidade, desde o trabalho dos legisladores até a sentença judicial ou, se for o caso, até a decisão administrativa (6).

É importante ressaltar que essa visão (aliás, nem tão nova assim, pois surgiu há várias décadas) sobre a interpretação jurídica não invalida a importância da lei. Consiste apenas num esforço de chamar a atenção para a complexidade do fenômeno jurídico e para a criatividade responsável exigível daqueles que o interpretam. Fundamenta-se numa concepção abrangente do universo jurídico, mas parte do pressuposto de que, embora os fatores extra legais (da Ética, da Psicologia, da Sociologia, da Política, da Economia, da Antropologia, etc) sejam de inegável valia para o Direito, não se pode encará-lo somente sob prisma desses fatores. E mais: a natureza normativa, que dá especificidade ao fenômeno jurídico, deve ser valorizada por ultrapassar os referenciais das citadas disciplinas (7).

Em síntese: a lei é muito importante para o Direito, mas o Direito não é só lei. E isso também vale para o Direito Público, que embora esteja submetido ao princípio da legalidade tem, também como parâmetros, entre outros, a moralidade e o interesse público.

Até porque a lei que vale não é a que está aprisionada nas constituições e nos códigos, mas aquela que sai da cabeça e do coração de quem a interpretou para aplicá-la. E, no momento dessa interpretação, aquilo que interessa não é “o certo ou o errado”, mas o resultado final –– as consequências que o ato hermenêutico vai alcançar ––, ou seja, aquilo que interessa é se a interpretação é sensata, razoável e se leva a um bom resultado. (Isso porque, na etapa hermêutica, devem ser afastadas as categorias lógicas de “verdade” ou “erro”, próprias para o estudo do Direito, as quais devem ser substituídas por critérios de razoabilidade e adequação a finalidades. Por isso, diz-se que uma interpretação é boa quando alcança um bom objetivo.

O mesmo raciocínio se põe, relativamente ao Direito Administrativo, no que se refere às propostas da Administração, sejam ou não de índole normativa: penso que devem ser acatadas (ou não) em face do seu conteúdo, e não em razão de sua origem. Além disso, se temos a possibilidade de descumprir regras manifestamente ilegais, também é inconcebível que, com nossos pareceres –– que constituem fundamento da decisão administrativa –– que outorguemos respaldo jurídico a propostas imorais ou injustamente lesivas à comunidade e a grupos, apenas pelo fato de serem provenientes da autoridade. Cite-se, a propósito, um caso notório que ocorreu, entre nós, em 1993, referente à autorização legislativa para o aumento de capital da EMURB. No ano seguinte, deu-se a edição do respectivo decreto regulamentador ––– sem dúvida com base numa prévia análise jurídica –– que aumentou o mencionado capital para quinhentos milhões de reais, integralizando-o com créditos tributários e imóveis municipais (isso, segundo decisão judicial posterior, feria a lei orçamentária do Município). Como consequência, houve uma queda acentuada da arrecadação, –– pois os credores não sabiam a quem pagar, se à Prefeitura ou se a EMURB –– o que, felizmente, redundou na revogação do referido decreto.

Se, por apego a um esclerosado formalismo, não pesarmos as consequências de nossas interpretações (que consistem, na maioria das vezes, na fundamentação das decisões administrativas) poderemos, guardadas as devidas proporções, incidir no mesmo engano cometido por alguns magistrados de Hitler, que, após a segunda guerra mundial, acabaram por ser levados a julgamento, como aconteceu em Nuremberg. É que, apesar de cultíssimos, do ponto de vista técnico-jurídico, tais juízes prolatavam suas sentenças com base no estrito teor das regras do nazismo, com abstração dos efeitos, muitas vezes monstruosos, que a aplicação dessas regras iria acarretar. É que, consideravam as normas apenas do ponto de vista de seu enunciado, sem qualquer análise sobre se eram plausíveis, justas e éticas. A leis –– em especial, as que tutelavam o racismo anti-semita––foram cumpridas, mas com seqüelas tão terríveis que delas o mundo não conseguiu se recuperar.


NOTAS

1. Observe-se que a idéia de “sistema” está relacionada com o conhecimento físico-matemático, tendo sido transposta para o Direito, ciência dita “humana”. Aliás, essa tendência positivista, também ocorreu em todos os outros ramos do saber.
2. Leia-se a excelente síntese de Luis Fernando Coelho, em Lógica jurídica e interpretação das leis, Rio de Janeiro, Forense, 1979. p.2, de onde tirei alguns subsídios para este artigo.
3. Dalmo Dalari, O poder dos juízes, Saraiva, 1996. p.83
4. André Franco Montoro, “Lógica Jurídica - uma ferramenta para o jurista), artigo publicado in Direito, cidadania e justiça. São Paulo, R.T., 1995, p.20.
5. Chaim Perelman, À propos de la règle de Droit-réflexions de méthode, in La Règle de Droit. Bruxelles, Établissements Émile Bruylant, 1971, p.322.
6. Luís Recasens Siches, Tratado General de Filosofia del Derecho, México, Ed. Porrua, 4a. ed. , 1970. p. 494)
7. Miguel Reale, Filosofia do Direito, São Paulo, Saraiva, 1983, p.438-489. Diz ele: “hoje, já voltamos a atingir uma posição de maior equilíbrio; se não subordinamos rigidamente o juiz aos textos lógico-formais, é porque não o compreendemos alheio ao mundo das realidades humanas, aplicando, como um simples autômato, imperativos de leis resultantes tão-só de diretivas abstratas, ou agindo perigosamente, à margem da lei positiva, que lhe cabe aplicar com o sentido integral do Direito..."

Fonte: Aldeia Jurídica

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